Trabalho acadêmico referente à obra "O Tesouro" - Eça de Queirós
Resumo
A narrativa “O tesouro” descreve a história de três irmãos de Medranhos: Rui, Guanes e Rostabal, que viviam em plena miséria a ponto de, em noites de frio intenso e nevasca, pernoitarem no estábulo que abrigava suas três éguas, já que a velha choupana em que habitavam era descoberta de telhas e vidros.
Em certa manhã de domingo, enquanto procuravam pegadas de caça, encontraram em Roquelanes um velho cofre de ferro, com três fechaduras e três chaves. Ao mesmo tempo em que abriram o cofre e mergulharam no ouro, a desconfiança tomou conta dos três, que imediatamente levaram as mãos ao cabo de suas espadas. Rui, descrito como sendo aparentemente o líder dos três, argumenta que o tesouro vinha de Deus, e que deveria ser dividido em três partes. Porém, parecia perigoso sair dali com tanto ouro, sendo necessário arrumarem uma maneira segura de transportá-lo. Decidiram que Guanes, por ser o mais leve dentre eles, deveria pegar uma parte do ouro e ir à cidade de Retortilho comprar alforjes, vinho e comida para eles e para as éguas a fim de aguetarem a caminhada de volta.
Guanes, então, assegura-se de levar consigo a sua chave e sai em cavalgada até a cidade para comprar os mantimentos e, no caminho sai cantarolando:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglésia
Vestida de negro luto...
Enquanto aguardam o irmão mais novo voltar, Rui e Rostabal conversam entre si que Guanes não deveria estar com eles, pois havia se recusado mais cedo a fazer a caminhada, e que isso deveria ser má sorte para ele. Ambos chegam à conclusão de que Guanes também era egoísta, que jamais dividiria o tesouro com eles, por isso decidem matá-lo.
Rostabal esconde-se aguardando a volta de Guanes, com a espada em punho, quando escuta Guanes se aproximando:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la inglésia,
Vestida de negro luto...
Rostabal desfere um golpe de espada abaixo do ventre do irmão, a pedido de Rui, que também não se esquece de pedir para Rostabal pegar a chave de Guanes. Após o feito, Rostabal, ao lavar-se do sangue do irmão, é atacado no coração por Rui, com um golpe pelas costas.
Possuindo agora as três chaves, Rui abre o cofre, olha as garrafas de vinho, as azeitonas e a carne assada que Guanes trouxera e, sentindo fome e ignorando o fato de que havia ali apenas duas garrafas do vinho, decide comer e beber. Deliciando-se com a comida, com o vinho e com o tesouro em suas mãos, Rui sente que algo o queima por dentro. Rui que até então era o mais safo entre eles, grita então pelos irmãos Guanes e Rostabal, e percebe que o que tomara era veneno e que a intenção do irmão mais novo era igual à dele: de matar os irmãos e ficar com o tesouro sozinho. Agonizando, Rui morre envenenado.
A história conta que até hoje o tesouro encontra-se na mata de Roquelanes.
Sobre o autor
Eça de Queirós (1845 – 1900) é considerado o mais importante ficcionista do Realismo em Portugal e um dos maiores em língua portuguesa. Exerceu influência não só sobre escritores portugueses, mas também sobre as literaturas brasileiras e espanholas.
O objetivo do autor em seus escritos foi adequar sua visão de mundo, criando um estilo solto, livre e transparente, em uma linguagem expressiva, que, incorporado à língua corrente em Lisboa, também contribuiu para aumentar seu público.
O Realismo em Portugal
Além de significar uma renovação da própria literatura, nas suas formas de expressão: temas, linguagem e visão de mundo, a escola literária representou uma tentativa de tirar todo o país da mentalidade romântico-cristã e levá-lo à “modernidade”, por meio de contato com as novas ideias filosóficas e científicas que circulavam a Europa.
O Realismo teve início em 1865 com a questão Coimbrã. Nessa época, haviam cessado as lutas entre os liberais e as facções que representavam a monarquia deposta pela revolução de 1820, sendo consolidado o liberalismo. Porém, apesar das mudanças no cenário político e cultural, a literatura portuguesa ainda se encontrava impregnada de velhas ideias românticas e árcades, e o Realismo foi o “esvaziamento” dessas ideias.
O conto “O tesouro” e suas características no Realismo
Eça de Queirós consegue, em poucas páginas, revelar o relacionamento humano, o caráter de egoísmo, ganância, inveja e cobiça: características marcantes do Realismo. A cobiça seguida de traição é a característica marcante do conto que prende a atenção do leitor. Eça utiliza-se de simbologia, fina ironia, e prova que os meios de vida interferem e corrompem a mente humana. A exemplo disso, os irmãos Medranhos, que viviam em extrema miséria, têm suas mentes corrompidas diante de tantas dificuldades e ao se depararem com um tesouro que mudaria suas vidas, revelam-se egoístas. O autor mostra que, diante de situações conflitantes e atípicas ao indivíduo, seu verdadeiro e mais deprimente caráter é revelado. A ideia de “ou tudo ou nada” representada pelas atitudes dos personagens, trazendo-lhes um final trágico, remete ao bom leitor a uma ideia oposta, de “quem tudo quer, tudo perde”.
Simbologia
O conto “O tesouro” é enriquecido com uma simbologia que passa para o leitor não-amador, aspectos do caráter psicológico da alma humana. Detalhes desses símbolos tornam o espaço na obra macabro e sombrio, subjetivando dois temas: fraternidade familiar versus ambição, na qual esta última revela o poder do egoísmo e suas consequências.
TRÊS
Durante a narrativa, realista em terceira pessoa, nota-se a presença marcante do número três, que, além de outros significados, refere-se na obra à representação de um inteiro. Como uma família, que é representada por pai, mãe e filho, numa respectiva hierarquia, os irmãos Medranhos possuem tal hierarquia. Simbolistas também utilizam o “três” em associação aos três reis magos, citados na bíblia, além de existir também, a representação católica da trindade. Temos isso em vários fragmentos, como no exemplo abaixo:
“Os três irmãos de Medranhos...”
“... a comprar três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho.”
“... três chaves nas suas três fechaduras...”
TELHA
Faz-se referência à ausência de vidraça e telha na casa dos irmãos no primeiro momento. No segundo, a telha é citada fazendo parte da imaginação de Rui. Segundo a simbologia, “telha” significa proteção, mas quando o ambiente é destelhado, as más influências corrompem o homem.
“... o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles tardes desse inverno...”
“... pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve...”
LAREIRA
A lareira, na simbologia, é o “centro de vida”, pois traz calor e luz ao lar. No conto, ela é descrita primeiramente como “lareira negra”, passando a ter significado oposto, e por uma segunda vez, é citada em uma das viagens psicológicas de Rui, ao imaginar-se rico. Temos isso nos respectivos fragmentos:
“... diante da vasta lareira negra, onde desde então não estalava lume, nem fervia panela de ferro...”
“... pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve...”
ÁGUA
Em muitos trechos, a água é citada. Tanto em forma de “fio de água”, como “fonte”, que lavava o morto. A simbologia da água é riquíssima, mas representa principalmente a “vida”, e a “purificação” tanto em seu nascimento (fonte) como em seu estado inerte (tanque). Temos tais referências nos fragmentos:
“Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água.”
“... entre uivos, procurava o fio de água, que recebia pelos olhos, pelos cabelos.”
“A fonte, cantando, lavava o outro morto.”
VINHO
O vinho, segundo a simbologia, representa sangue. Sangue este, derramado por todos os personagens do conto.
CORVO
A figura do corvo aparece no conto por mais de uma vez. Segundo a simbologia, o corvo representa mau agouro, é a ave negra dos românticos.
“Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando”
PLUMA
A pluma é representada na simbologia um canal que faz com que as orações subam até o céu. No conto, ela aparece por duas vezes, sendo que, na última, aparece quebrada, cortando a possibilidade de dessa comunicação. Após o assassinato de Guanes, a pluma de Rostabal é citada como quebrada e torta.
“Rostabal, adiante, fugindo com a pluma do sombrero quebrada e torta...”
RUIVO
Rui, personagem mais ativo desde o começo até o fim do conto, é um homem ruivo. Desde as iniciais de seu nome, até suas atitudes, mostram que a simbologia do ruivo é muito importante na obra. Segundo a simbologia, o ruivo representa fogo impuro. Segundo alguns estudiosos, Judas Escariotes, personagem bíblico que trai Jesus, era ruivo.
“Então Rui, que era gordo e ruivo...”
OURO
Embora a simbologia do ouro seja repleta de significados, na obra, aplica-se bem a seguinte significação: O ouro moeda (tesouro) é de perversão e exaltação impura dos desejos.
“E dentro, até as bordas, estava cheio de dobrões de ouro!”
MÚSICA FÚNEBRE
A música cantada por Guanes em sua partida e em sua chegada representa luto, e preconizava má intenção:
Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto . . .
Conclusão
O escritor realista expôs, de forma brilhante, a fraqueza de espírito existente nos personagens e mostrou até que ponto o poder corrompedor que a vida, a sociedade e os meios podem exercer sobre o caráter humano que é refletido em suas atitudes. É um conto realista de leitura obrigatória.
Bibliografia:
Dicionário de Símbolos - Jean Chevalier/Alain Gheerbrant
Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.
Ed. Robert Laffont S.A. e Ed. Jupiter, 1982
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A. - 10ª edição
Panorama da Literatura Portuguesa
CEREJA, Willian Roberto
Magalhães, Thereza Conchar
Editora Atual, 1997
Por Mônica Lima Falsarella